Possibilidade de mediação entre o humano e o não-humano



Por Sofia Marçal, curadora



Ecologias Tentaculares é uma instalação artística de Catarina Reis, que surge no contexto do desenvolvimento da investigação teórico-prática de doutoramento em Belas-Artes em Arte Multimédia na FBAUL que a artista está a desenvolver. A investigação é baseada na possibilidade de cocriação artística com agências não-humanas através de uma prática experimental multimédia / biomedia, posicionada entre Arte, Ciência e Tecnologia.


A realização desta intervenção artística no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, na fachada de uma casa temporariamente abandonada, na entrada para o Jardim Botânico, é oportuna e desejável enquanto enquadramento da ligação entre a Arte e a Ciência, relação que o museu valoriza e quer exponenciar. Mas o trabalho de Catarina Reis não fica contido ao espaço do museu, nem da Arte, nem da Ciência. Há uma nítida dilatação do espaço, do tempo, e dos limites disciplinares. A instalação coloca-nos perante situações de permanentes contágios, intrusões, e inquietações, onde descobrir novas relações com a natureza é uma forma de fazer arte.


Após os gestos iniciais da artista, o processo de colonização natural, a ocorrer ao longo do tempo, será parte da própria obra. O pequeno interstício criado na parede será povoado de espécies vegetais espontâneas e de todo o ecossistema que as rodeia. A artista oferece-lhes um espaço retirado ao edificado, enaltecendo-o, ao pintar de dourado os seus limites. Estes, contém uma percentagem simbólica de um mineral precioso, sob a forma de folha de ouro diluída no acabamento. Citando a artista, “O resultado consiste num diálogo entre duas matérias naturais distintas: uma conotada como marginal, outra de carácter nobre. Ambas coexistem como uma evidência do desejo de reparação através de técnicas imperfeitas, evocando práticas ancestrais de reparação cerâmica. Ao mesmo tempo, a imagem do ouro, em contraste com uma ocupação vegetal tradicionalmente marginal e “daninha”, coloca em tensão conceitos de valor monetário, estético, ecológico e arquitectónico.”


Catarina Reis cria esta instalação num contexto de intervenção temporária, na procura experimental da interação da Natureza com a Arte, fazendo-nos suas testemunhas neste seu caminho. A artista-arquitecta, lida com o reposicionamento da identidade arquitectónica e da reavaliação consciente do seu posicionamento critico em prol das suas convicções: “Nunca nenhum escritor, compositor ou pintor sério duvidou, nem mesmo durante os momentos de esteticismo estratégico, de que a sua obra tratasse do bem e do mal, do enriquecimento ou delapidação da humanidade do homem e da cidade.”[1]


A apropriação metodológica de Catarina Reis, que também é investigadora, é a dinâmica empírica que se relaciona com o experimentalismo na ciência. “A singularidade da obra de arte é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria, é algo de completamente vivo, de extraordinariamente mutável.” [2] O ponto de intersecção entre a Arte e a Ciência é a própria transformação. A criação e construção do trabalho artístico revelam uma pesquisa que pode ocasionar outras possibilidades de investigação numa reflexão sobre o território contemporâneo e o papel do Homem na relação com ele, neste contexto repleto de desafios que é o Antropoceno.


Perante a complexidade dos desafios contemporâneos é essencial experimentar, tentar, sentir, e imaginar. A imagem do tentáculo, proposta pela bióloga e filósofa Donna Haraway, pode ser ela mesma uma interessante ferramenta metodológica de trabalho, na intersecção entre Arte e Ciência: “Eu recordo que tentáculo vem do latim tentaculum, que significa teste e tentare, que significa tentar.”[3] Em Ecologias Tentaculares experimentam-se possibilidades, acolhendo com curiosidade o imprevisível: “Ouvi um dia uma flor cantando e tranquilamente me alegrei; depois me aproximei e, milagre, não era a flor que cantava mas um passarinho sobre a flor.”[4] Desejamos que um passarinho venha pousar neste pedaço de jardim, generosamente criado por Catarina Reis, que necessita também da generosidade da natureza para florescer.



[1] George Steiner, in: Presenças Reais, p. 133.

[2] Walter Benjamin, in: A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, p.83.

[3] Donna Haraway, in: Staying With the Trouble. Making Kin in the Chthulucene, p. 31. (tradução livre)

[4] Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem, p.83.